domingo, 16 de maio de 2010

V


Amo a recordação daqueles dias nus

Em que Febo inundava as estátuas de luz,

Quando homem e mulher na sua agilidade

Folgavam sem engano e sem a ansiedade.

A afagar-lhes a espinha um sol pleno de amor

Da máquina mais nobre excitava o vigor.

Cibele, que era então de seio generoso,

Nos seus filhos não via o que fosse oneroso.

Mas, loba, o coração todo ternuras plenas

Aleitava o universo com tetas morenas.

Ágil no seu vigor, o homem em boa lei

Podia envaidecer-se ao chamarem-no rei;

Frutos puros de ultraje e virgens feridas

De carne lisa e firme evocando mordidas.

Hoje, o Poeta quando almeja imaginar

Tal grandeza nativa onde vá contemplar

A nudez da mulher perto da nudez do homem

Sente arrepios negros, os que a alma consomem.

A este negro painel, uma imagem de espanto.

Ah, monstruosidades que esperam um manto!

Troncos dignos de máscaras, ridículos, desnudos,

Pobres corpos torcidos, flácidos ou ventrudos,

E que o Útil, este deus sereno e sem cansaço

Logo à infância envolveu em tristes cueiros de aço.


Charles Baudelaire

IV - Correspondências


A Natureza é um templo onde vivos pilares

Podem deixar ouvir confusas vozes: e estas

Fazem o homem passar através de florestas

De símbolos que o vêem com olhos familhares.

Como os ecos além confundem seus rumores

Na mais profunda e mais tenebrosa unidade,

Tão vasta como a noite e como a claridade,

Harmonizam-se os sons, os perfumes e as cores.

Perfumes frescos há como carnes de criança

Ou oboés de doçura ou verdejantes ermos

E outros ricos, triunfais e podres na fragrância

Que possuem a expansão do universo sem termos

Como o sândalo, o almíscar, o benjoim e o incenso

Que cantam dos sentidos o transporte imenso.


Charles Baudelaire

III - Elevação


Por sobre os pantanais, por sobre os descampados,

Por sobre o éter e o mar, por sobre o bosque e o monte,

E muito além do sol, muito além do horizonte,

Para além dos confins dos longes estrelados,

Meu espírito, vais, todos os céus te movem,

Como um bom nadador cais em delíquio na onda,

Sulcas alegremente a imensidão redonda,

Levado por volúpia indizível e jovem.

Bem longe deves voar destes miasmas tão baços;

Vai te purificar por um ar superior,

E bebe, como um puro e divino licor,

O claro fogo que enche os céus lúcidos e serenos!

Este cujo pensar, como a andorinha, muda

Para o céu da manhã num vôo ascensional,

- Que plana sobre a vida a entender afinal

A linguagem da flor e da matéria muda!


Charles Baudelaire

Spleen e Ideal


II - O Albatroz

Às vezes, por folgar, os homens da equipagem

Pegam de um albatroz, enorme ave do mar,

Que segue - companheiro indolente de viagem -

O navio no abismo amargo a deslizar.

E por sobre o convés, mal estendido apenas,

O imperador do azul, canhestro e envergonhado,

Asas que enchem de dó, grandes e de alvas penas,

Eis que deixa arrastar como remos ao lado.

O alada viajor tomba como num limbo!

Hoje é cômico e feio, ontem tanto agradava!

Um ao seu bico leva o irritante cachimbo,

Outro imita a coxear o enfermo que voava!

O Poeta é semelhante ao príncipe do céu

Que do arqueiro se ri e da tormenta no ar;

Exilado na terra e em meio do escarcéu,

As asas de gigante impedem-no de andar.


Charles Pierre Baudelaire

Edgar Allan Poe




Edgar Allan Poe nasceu em Boston, no dia 19 de Janeiro de 1809. Seu avô David Poe participou da Guerra da Independência, e seu pai (também chamado David Poe) apaixonou-se pela atriz inglesa Elisabeth Arnold, casando-se com ela. Edgar Allan Poe teve dois irmãos e seus pais faleceram pouco tempo depois do nascimento de Rosalie, a filha mais nova do casal. Porém, não ficaram desamparados e foram adotados pelo rico casal John Allan e Frances Keeling Allan.

Poe estudou em Londres na Stoke-Newington; algum tempo depois continuou seus estudos de volta a Richmond, na Universidade Charlotteville. Allan Poe, apesar de muito inteligente era também muito genioso, e isto lhe valeu a expulsão desta universidade.

Edgar Allan Poe era um jovem aventureiro, romântico, orgulhoso e idealista. Continuou seus estudos em Virgínia, mas também foi expulso por não se enquadrar nos padrões comportamentais daquela época. Na verdade, Allan Poe era um boêmio que vivia no luxo, se entregando à bebida, ao jogo e às mulheres. Mais tarde, foi para a Grécia e ingressou no exército lutando contra os turcos.

Porém, suas ambições militares não vingaram, e perdeu-se nos Balcans chegando até a Rússia, sendo repatriado pelo cônsul americano. De volta a América, descobre que sua mãe adotiva havia falecido.

Logo após, alista-se num Batalhão de artilharia e matricula-se na Academia Militar de West Point. Mas com o lançamento de uma compilação de poesias em 1831, desliga-se da Academia e corta relações com seu pai adotivo, devido ao casamento com outra mulher, o que teria deixado Poe muito contrariado.

Aos 22 anos, vivendo na miséria, publica Poemas. Já em Baltimore procura pelo irmão Willian e assiste a morte dele. Allan Poe passa a viver com uma tia muito pobre e viúva com duas filhas. Durante dois anos vive em miséria profunda. Mas vence dois concursos de poesias e o editor Thomaz White entrega-lhe a direção do "Southern Literary Messenger".

Em 1833 lança Uma aventura sem paralelo de um certo Hans Pfaal. Dirige a revista por dois anos. Allan Poe gozava de uma certa reputação com leitores assíduos. Depois de sua vida estabilizada, aos 27 anos casa-se com sua prima de 13 anos, Virgínia Clemn. No ano de 1838 trabalha na Button’s Gentleman Magazine na companhia de sua esposa. O casal vivera na Filadélfia, Nova York e Fordham. Em 1847, sofre com a morte de sua esposa vitimada pela tuberculose.

Em 1849, Allan Poe lança O Corvo. Eureka e Romance Cosmogônico lhe atribuem a fama necessária para provocar a censura da imprensa e da sociedade. Desiludido, volta para Richmore e depois vai para Nova York e entrega-se à bebida. Antes de seguir para a Filadélfia, resolve encontrar-se com velhos amigos. Na manhã seguinte, Poe é encontrado por um amigo em estado de profundo desespero, largado numa taberna sórdida, de onde o transportaram imediatamente para um hospital. Estava inconsciente e moribundo. Ali permaneceu, delirando e chamando repetidamente por um misterioso "Reynolds", até morrer, na manhã do domingo seguinte, aos 39 anos e deixando uma vasta obra em sua vida de sacrifícios e desordem. Era 7 de outubro de 1849, e os Estados Unidos perdiam um de seus maiores escritores. Até hoje não se sabe ao certo o que tenha acontecido naquela noite. Teria o autor, sido vítima da loucura que em tantos contos narrou? Muitos afirmam que tenha sido vítima de uma quadrilha que o envenenou, mas o mais certo é que tenha tido uma overdose de ópio.

Poe escreveu novelas, contos e poemas, exercendo larga influência em autores fundamentais como Baudelaire, Maupassant e Dostoievski. Mas admite-se que seu maior talento era em escrever contos. Escreveu contos de horror ou "gótico" e contos analíticos, policiais. Os contos de horror apresentam invariavelmente personagens doentias, obsessivas, fascinadas pela morte, vocacionadas para o crime, dominadas por maldições hereditárias, seres que oscilam entre a lucidez e a loucura, vivendo numa espécie de transe, como espectros assustadores de um terrível pesadelo. Entre os contos, destacam-se O gato preto, Ligéia, Coração denunciador,A queda da casa de Usher, O poço e o pêndulo, Berenice e O barril de amontillado. Os contos analíticos, de raciocínio ou policiais, entre os quais figuram os antológicos Assassinato de Maria Roget, Os crimes da Rua Morgue e A carta roubada, ao contrário dos contos de horror, primam pela lógica rigorosa e pela dedução intelectual que permitem o desvendamento de crimes misteriosos.

Em seus contos, Poe se concentrava no terror psicológico, vindo do interior de seus personagens ao contrário dos demais autores que se concentravam no terror externo, no terror visual se valendo apenas de aspectos ambientais.

Geralmente, os personagens sofriam de um terror avassalador, fruto de suas próprias fobias e pesadelos, que quase sempre eram um retrato do próprio autor, que sempre teve sua vida regida por um cruel e terrível destino. Nenhum de seus contos é narrado em terceira pessoa, desse modo, vê-se como realmente é sempre "ele" que vê, que sente, que ouve e que vive o mais profundo e escandente terror. São relatos em que o delírio do personagem se mistura de tal maneira à realidade que não se consegue mais diferenciar se o perigo é concreto ou se trata apenas de ilusões produzidas por uma mente atormentada.

Em quase todos os contos, sempre há um mergulho, em certas profundezas da alma humana, em certos estados mórbidos da mente, em recônditos desvãos do subconsciente. Por esses aspectos a psicanálise lança-se ao estudo da obra de Poe, já que a mesma possui uma grande leva de exemplos que ilustram suas demonstrações. Independentemente desse aspecto, sua obra é lembrada pelo talento narrativo impressionante e impressivo, pela força criadora monumental e pela realização artística invejável, fazendo com que Edgar Allan Poe seja considerado um dos maiores autores de contos de terror.


Demon Woman

Alfred de Musset




Alfred Louis Charles de Musset nasceu em Paris no dia 11 de Dezembro de 1810. Filho de Victor-Donatien de Musset-Pathay e de Edmée Guyot-Desherbiers, aos nove anos de idade, foi matriculado no Lycée Henri-IV. Já manifestava nestes primeiros anos acadêmicos seu talento em relação às letras; certamente herdado de sua família, na qual seu pai e avô eram escritores bem conceituados. Sendo que seu pai mantinha um estreito laço de amizade com Jean-Jacques Rousseau. Deste modo, não é exagero afirmar que Rousseau influiu fortemente na fundamentação da obra de Musset.

Aos dezessete anos, com a obra A origem de nossos sentimentos, conquistou a segunda colocação em um concurso de escrita em latim. Em seguida optou por cursar medicina. Entretanto, por não se identificar com a profissão, decidiu abandonar o estudo. Em segudia, ainda envolveu-se com Direito, desenho, ensino da língua inglesa, piano e saxofone. Paralelamente, orientado por Paul Focher, passou a freqüentar o Cénacle, o salão literário da Bibliothèque de l'Arsenal. Foi neste momento que o jovem Musset percebeu sua vocação literária.

Com apenas dezenove anos de idade, em 1829, publicou seu primeiro livro: Contes d'Espagne et d'Italie, no qual encontrava-se paródias de algumas obras românticas. Este trabalho elevou o nome de Musset entre os intelectuais do Cénacle, despertando admiração por sua ousadia e repúdio por parodiar obras consagradas.

Em 1830, Musset estreou no teatro a comédia La Nuit vénitienne, na qual tentou combinar tendências clássicas e românticas. Esta primeira investida teatral não foi bem sucedida e sentiu-se desencorajado a continuar escrevendo peças. Entretanto, apenas três anos mais tarde, retorna ao teatro com La Coupe et les Lèvres (drama), À quoi rêvent les jeunes filles? (comédia) e o contoNamouna. Em 1832, Musset, na ocasião da publicação da obra Indiana, conhece a escritora George Sand (pseudônimo da baronesa Amandine Lucie Aurore Dupin), doze anos mais velha. Musset e Sand iniciam um romance e partem para a Itália. Durante esta viagem Musset escreveLorenzaccio. O casal passa dois anos na Itália quando Musset adoece e George envolve-se com o médico que cuidava do escritor. O fato foi determinante para o fim da relação. Após restabelecer-se, o escritor regressa a Paris. As peças Le Chandelier, On ne badine pas avec l'Amour e Il ne faut jurer de rien mantêm-se em cartaz. Paralelamente, escreve algumas novelas em prosa e a conhecida Confession d'un enfant du siècle (Confissão de um filho do século - que registra pela primeira vez o uso da expressão "Mal do século" como o estado de desencanto e vaga melancolia). Esta obra é uma autobiografia consagrada à ex-amante, na qual Musset manifesta suas lamúrias devido à infidelidade da companheira. Esta relação também inspirou a peça On ne badine pas avec l'amour, de 1834.

Entre os anos de 1835 e 1837, Musset escreve Les Nuits (Nuits de mai, d'août, d'octobre, de décembre) que se tornaria referência do gênero romântico da França e que aborda o sofrimento amoroso, amor e inspiração, na qual o escritor dialoga com sua musa. Ainda, Lettre à Lamartine, de 1836, na qual afirma ser o amor a fonte principal da arte. Dessa fase também surgiram Les Caprices de Marianne e Un caprice. A partir de 1837 sua saúde já não apresenta o mesmo vigor da juventude.

Ainda, foi nomeado bibliotecário do Ministério do Interior; entretanto, perdeu seu cargo após a Revolução de 1848, sendo, em seguida, convidado a atuar no Ministério da Instrução Pública.

Em 24 de Abril de 1845, Musset e Balzac receberam a Légion d'honneur. Musset, em 1848 e 1850, logrou ingressar na Académie Française, obtendo sucesso apenas em 1852. Neste momento, devido a uma má formação cardíaca congênita, o escritor encontrava-se constantemente adoentado. Sua situação agravou-se devido ao alcoolismo e a um estilo de vida totalmente desregrado.

Finalmente, faleceu Alfred Louis Charles de Musset, em Paris, no dia 2 de maio de 1857. Sobre o desejo de seu irmão, Paul de Musset, o escritor foi sepultado no cemitério Père Lachaise onde agora há uma escultura em sua homenagem. Paul de Musset também foi responsável pela composição biográfica póstuma e reedição de várias obras de Musset.

Em 1859, George Sand publicou Elle et lui, uma novela autobiográfica em resposta à Confession d'un enfant du siècle de Musset. A relação amorosa ainda rendeu, em 1902, uma espécie de estudo entre a relação afetiva e intelectual entre Sand e Musset, através do Les Amants de Venise - George Sand et Musset, de Charles Maurras.

Alfred de Musset encarnou a figura do poeta boêmio e romântico do século XIX. Sua obra, fortemente influenciada por Vitor Hugo, solidificou os conceitos do romantismo na França e ecoou no Brasil através de Álvares de Azevedo.


Demon Woman

Ao Leitor


Sempre tolice e erro, culpa e mesquinhez
Trabalham nosso corpo e ocupam nosso ser,
E aos remorsos gentis, nós damos de comer
Como o mendigo nutre a sua sordidez.

Frouxo é o arrependimento e tenaz o pecado,
Por nossas confissões muito é o que a alma reclama,
Voltando com prazer a um caminho de lama,
Crendo lavar as manchas com um pranto amaldiçoado.

Junto ao berço do Mal é Satã Trismegisto,
A nossa alma a ninar tão longamente invade,
Do precioso Metal desta nossa vontade,
Este alquimista faz um vapor imprevisto.

É o Diabo que nos move através de cordéis!
O objeto repugnante é o que mais nos agrada;
E do Inferno a descer sempre um degrau da escada,
Vamos à noite errar por sentinas cruéis.

Tal como um libertino que beija e mastiga,
O seio enrugado da velha vadia,
Furtamos ao acaso uma oculta alegria,
Que esprememos assim como laranja antiga.

Espesso, a formigar como um milhão de helmintos,
Ceva-se em nossa fronte um povo de avejões,
E quando respiramos, a Morte nos pulmões,
Desce, invisível rio e com sons indistintos.

E se o estupro, o veneno, o incêndio e a punhalada,
Não puderam bordar com seus curiosos planos
A trama banal vã dos destinos humanos,
É que nossa alma enfim não é bastante ousada.

No entanto entre lebréus, panteras e chacais,
Macacos e escorpiões, abutres e serpentes,
Os monstros a grunhir, ladrantes ou gementes,
Que são o nosso vício em infames currais.

Um existe mais feio e mais perverso e imundo!
Embora não se expanda em gestos ou em gritos,
De bom grado faria da terra só detritos,
E num simples bocejo engoliria o mundo.

É o tédio! - os olhos seus que a chorar sempre estão,
Fumando o seu huka, sonha com o cadafalso.
Tu conheces, por certo, o frágil monstro, ó falso
Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!

Charles Pierre Baudelaire